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“Escreva-te: é preciso que seu corpo se faça ouvir” – Hélène Cixous e o riso da Medusa

por Adriane Figueira
Foto de Luísa Machado para ilustrar a resenha de Adriane Figueira sobre O riso da medusa, de Hélène Cixous.

Adriane Figueira é paraense, nascida e criada às margens do Tapajós, mas vive há mais de uma década na capital carioca. Entusiasta da escrita e pesquisadora. Revoada do dragão (Patuá, 2021) é seu primeiro livro.


“O êxtase da escrita não é sentir o sopro da palavra que se liberta da carne, mas a carne que se une com o sopro das palavras.”
(Elena Ferrante)

A obra de Hélène Cixous, O riso da Medusa, publicada na França em 1975, ganhou uma edição brasileira em 2022, pela Bazar do Tempo. Depois de mais de 45 anos após seu lançamento, os ecos desse pequeno ensaio seguem audíveis e potentes. É preciso ler e reler este clássico tão caro para os Estudos de Gênero.

​Minha experiência de leitura com O riso da Medusa se deu em uma língua estrangeira, há alguns anos. Retornar a este texto, na minha língua materna, é poder sentir o frescor dessa “novidade”, o arrebatamento da inscrição e gozar com a linguagem tão cheia de armadilhas. A escrita feminina é voo e rapto, voler — voar/roubar —, meus conhecimentos gramaticais em língua francesa são limitados, mas a tradução brasileira está afiadíssima, cheia de notas reveladoras e misteriosas, como as muitas línguas dessa Medusa risonha. 

Hélène Cixous decreta o fim da decapitação do mito. Não é mais possível extirpar o espinho rosa que, uma vez alojado, persistirá no incômodo.

Pensei em escrever um longo poema para celebrar as Górgonas — Medusa e Hélène, mas me contive. Nesse vórtice emocionado de onde emerjo afoita, as palavras e ideias compartilhadas em O riso da Medusa são recolocadas aqui com algumas interferências. É sempre difícil escrever sobre livros e mulheres, ainda bate uma culpa de estar ocupando um lugar que não me pertence, mas ouçamos — eu e você — o canto cósmico dessa Medusa que despedaça e reúne, na carne e no verbo.


Medusa é uma criatura mítica, cultuada e temida dentro da cultura clássica, uma monstruosidade que se “alimenta” do medo de quem lança o olhar em sua direção. Entidade que carrega, no lugar de uma bela cabeleira outrora celebrada, serpentes em sua cabeça — uma auréola. Ela funciona como um arquétipo da condição feminina que opera dentro de, pelo menos, três eixos: a bela, a vítima e a algoz. A beleza foi seu castigo, fadada a carregar o horror que petrifica.

Das três irmãs Górgonas, Medusa é a única mortal, mas com poderes de deusa. Ela reina, comanda e está ligada à espiritualidade e à evolução, ao dualismo que envenena e salva. Nesse movimento de mirada profunda, da autoimagem que buscamos repelir, pois a sensação da falta é dolorosa, Medusa é a língua afiada, um reflexo deformador.

Hélène Cixous decreta o fim da decapitação do mito. Não é mais possível extirpar o espinho rosa que, uma vez alojado, persistirá no incômodo. “Eu escrevo mulher”, sem vírgula, eu me ergo mulher, não há rascunho ou limite, a deusa mortal ri e este riso estridente ecoa desagradável aos ouvidos masculinos tão acostumados ao nosso silêncio. Escrever é violar as leis. Violemos, pois, as leis viris!

A mulher que escreve é a mulher sujeito universal, o ser-mulher, a que se abre aos desejos, aos calores, ao fogo flamejante das vontades e dos gestos. Somos nós as retornadas do fora (da cultura), do pântano do esquecimento, mas sempre dentro, uma explosão de eus em movimento: “Nós, as precoces, nós, as rechaçadas da cultura, nossas belas bocas bloqueadas por mordaças, pólen, fôlego cortado, nós, os labirintos, as escadas, os espaços pisoteados; as revoadas…” (p. 47)

Falo, mas não existo. Falo, logo, insisto. Falo e quebro pactos narcísicos, o “falo” em riste não opera no meu gozo de linguagem, na explosão do meu corpo que vibra alto e se expande. Cixous conhece a teoria, leu a realidade, fez intercâmbios com seus colegas homens e abriu muitos espaços para que as mulheres não apenas se insinuem, mas que falem para além do “falo” e que os homens nos escutem.

A fera fala através das línguas das serpentes em coroa, ela se diz na multiplicidade das bocas femininas. (…) Ela se ergue imensa e caminha em direção ao impossível.

A escrita feminina não está presa ao fluxo, ela é fragmento, impossibilidade de dizer-se, ela não cabe em teorias falocêntricas, ela opera dentro de um devir, um acontecimento sempre presente, insistente, trans-bordante. A castração lacaniana já não pode operar nesse sentido aqui, pois a falta é excesso e não somente abrigo, e a linguagem é a força que destronará os reis: “Tão grande é a potência feminina que, arrebentando a sintaxe e rompendo o famoso fio (tão pequeno, dizem eles), que serve aos homens como um substituto de cordão umbilical a assegurá-los – e sem o qual eles não gozariam – de que a velha mãe ainda está ali atrás deles vendo-os fabricarem falos, é que as mulheres irão ao impossível.” (p. 64)

​ A Medusa que ri em Cixous se escreve com tinta branca, se levanta da escuridão do verbo fálico, ​rompendo a todo o instante com o domínio insistente que tenta apagá-la, silenciá-la. O branco é uma referência ao leite materno, ao poder dessa força feminina que mobiliza os sentidos todos: de fora para dentro, de dentro para fora, em todas as direções: texto – sexo = sexto, nas palavras de Hélène. Mostremos todas os nossos “sextos”!

A fera fala através das línguas das serpentes em coroa, ela se diz na multiplicidade das bocas femininas. O sorriso nasce do gozo, do mistério, do delírio. Ela ri um riso subversivo, cínico, tempestuoso, vigoroso. Ela se ergue imensa e caminha em direção ao impossível: “Se existe algo ‘próprio’ à mulher é paradoxalmente sua capacidade de se des-apropriar sem cálculo: corpo sem fim, sem ‘pedaço’, sem ‘partes’ principais; se ela é um todo, é um todo composto de partes que são todos, não somente objetos parciais, mas um todo movente e em mudança, ilimitado cosmos que Eros percorre sem repouso, imenso espaço astral não organizado em torno de nenhum sol mais-astro que os outros”. (p. 70)

A mulher que encara a Medusa, não petrifica, ela se fragmenta e se multiplica nesse grande jogo de espelhos. Escrever é mover o corpo e o espaço, é destituir reis, é derrubar a verticalidade e transformar o horizonte. “Eu sou para você o que você quer que eu seja no momento em que você me olha de uma maneira que você ainda nunca me viu: a cada instante.” (p. 81) Gargalhemos!


CIXOUS, Hélène. O riso da Medusa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.


Foto de Luísa Machado.


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Mais sobre a obra

“Eu nunca escrevi diários! Isto aqui é um extravasamento, um inventário estilhaçado, sem datas fixas no calendário, sem horários demarcados — guiado por Kairós”. Assim escreve no preâmbulo a autora de cacos retidos na margem, nomeando Kairós como preceptor de sua jornada entre a prosa e a poesia e, nesse simples ato, recusando a medida, a exatidão e a linearidade.

O tempo da palavra de Adriane Figueira é o do extravasamento. Os textos desse livro são desenhos sutis, quase oníricos, de um labirinto de memórias e vertigens que, solitário e vigilante, assoma como possibilidade de um contágio verbal que desoculta as tempestades da nossa experiência.

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